Entre carros elétricos, marcas de peso não são páreo para a Tesla

O Estado de S. Paulo 

 

Depois de uma década sendo derrotada pela Tesla Inc., este deveria ter sido o ano em que as montadoras tradicionais finalmente lutariam pelo mercado de carros elétricos. A General Motors estava comprometida com o plano de as maiores marcas terem uma nova linha de modelos elétricos; a Ford e a Volkswagen estavam aumentando a produção de carros elétricos mais populares. Muitos previram que era hora de a ordem mundial automotiva se reafirmar.

 

Mas as coisas não correram bem assim. A alardeada picape F-150 Lightning, da Ford, foi superada pela R1T, da Rivian, uma startup que vendeu seu primeiro veículo há apenas dois anos. A linha de novos carros elétricos da GM sofreu reveses na fabricação de baterias. Em julho, o CEO da Volkswagen, Thomas Schaefer, resumiu de forma sucinta a competitividade de sua própria empresa em relação aos veículos elétricos: “O teto está pegando fogo”.

 

A menos de dois meses para o fim do ano, 2023 tem sido menos uma história de redenção para os fabricantes de automóveis antigos do que uma evidência adicional de seu atoleiro. Nos EUA, a Tesla tem expandido a produção tão rapidamente quanto todos os seus concorrentes juntos. A fabricante de veículos elétricos com sede em Austin, Texas, é responsável por 61% dos carros totalmente elétricos já vendidos no país, o que a torna mais dominante em veículos elétricos do que a Apple em smartphones.

 

Corte de preços

 

A Tesla começou o ano com uma série dramática de cortes de preços que redefiniram as expectativas dos clientes em todo o setor. Antes das mudanças, a versão mais barata do SUV Model Y da Tesla custava quase US$ 20 mil a mais do que o preço médio de venda de um carro novo nos EUA. Em abril, esse diferencial havia se dissipado.

 

O último tiro disparado na guerra de preços da Tesla ocorreu em 1.º de outubro, quando a empresa apresentou uma nova versão do Model Y que começa com US$ 4 mil a menos do que o preço médio de venda de um veículo novo nos EUA. O Model Y está no caminho certo para ser o carro mais vendido do mundo em 2023 – mesmo após os cortes de preços, ele está fazendo isso com margens de lucro mais altas do que a maioria das montadoras obtém em seus veículos a gasolina.

 

A Ford foi a primeira a reagir com cortes drásticos de preços. Mas mesmo uma redução de até US$ 10 mil para a F-150 Lightning não foi suficiente para manter os planos de expansão de carros elétricos da Ford dentro do cronograma. Em julho, o CEO Jim Farley reduziu as metas de produção até 2026, dizendo que a empresa espera perder cerca de US$ 4,5 bilhões em veículos elétricos este ano. “A pressão sobre os preços aumentou drasticamente.”

 

A GM, a maior montadora dos EUA em termos de vendas de veículos, também está girando suas rodas. As esperanças da empresa estão depositadas nas novas baterias fabricadas por sua joint venture Ultium LLC, com a LG Energy Solution, da Coreia, que devem ter os custos reduzidos. Mas os atrasos colocaram no limbo a disponibilidade dos novos SUVs Chevy Blazer e Equinox e da picape Silverado, todos elétricos.

 

A Ford, a GM e a Stellantis ainda estão envolvidas em negociações com o sindicato United Auto Workers, o que pode levar a custos de mão de obra mais altos durante a fase de recuperação de dinheiro da transição para os veículos elétricos. (A Stellantis não planeja fabricar as picapes Ram e os Jeeps Wrangler elétricos até o final do próximo ano.)

 

Estrondo

 

A Tesla começou este ano decisivo para os veículos elétricos com um estrondo, e pode terminá-lo com outro. Com dois anos de atraso, espera-se que a empresa finalmente comece a vender sua primeira picape elétrica, a Cybertruck, nas próximas semanas. A data de lançamento ainda não foi anunciada.

 

A picape é uma massa de aço inoxidável e vidro de aparência alienígena – a mudança mais radical em forma e função que o mundo das picapes já viu em gerações. E, embora muitos no setor tenham rido disso, talvez não devessem. As picapes caras representam uma fração das vendas de automóveis nos EUA, mas a maior parte dos lucros do setor. Se elas começarem a se tornar elétricas tão rapidamente quanto os carros e SUVs, a eletrificação da F-150, da Silverado e da Ram será de importância vital para a Ford, GM e Stellantis.

 

Início ruim

 

Mas as coisas não começaram muito bem. A F150 Lightning é a mais avançada, mas, após 18 meses, representa apenas 3% das vendas da série F. A GM vendeu apenas 18 unidades da Silverado elétrica em sua estreia no terceiro trimestre, e a Ram 1500 REV ainda está a pelo menos um ano de distância. Com sucesso ou fracasso, a Cybertruck é algo que só poderia ter sido concebido em uma empresa totalmente dedicada aos veículos elétricos.

 

Uma pesquisa da Bloomberg com proprietários de carros da Tesla no início deste ano revelou um grande interesse em picapes. Dos 3,5 mil proprietários de carros da Tesla que estavam no mercado para comprar outro veículo, 37% estavam considerando uma Cybertruck. A concorrência não era acirrada. Cerca de 2,1% dos compradores estavam pensando em uma Rivian, e isso foi mais do que as três picapes das grandes marcas seguintes juntas. Embora a população da pesquisa possa não representar o mercado mais amplo de picapes, é pelo menos um sinal de onde os compradores de veículos elétricos estão engajados.

 

A transição para os veículos elétricos está parecendo menos um ajuste ordenado a um novo tipo de hardware de veículo do que o tipo de “jogada de Yahtzee” (um jogo de dados) que mexeu com o mercado e permitiu que a Apple assumisse o controle do setor de smartphones. Para ver como isso pode se desenrolar a partir daqui, basta olhar para a Califórnia, que está cerca de três ou quatro anos à frente dos Estados Unidos como um todo em termos de adoção de veículos elétricos. Nesse período, a Tesla passou de uma startup em dificuldades para superar a Toyota como a marca de carros mais vendida no maior mercado automotivo dos EUA.

 

Carregadores

 

A liderança da Tesla, no entanto, não é intransponível. No próximo ano, grande parte de sua rede própria de carregamento será aberta a outras montadoras, o que poderá dobrar a disponibilidade de carregadores de alta velocidade e limitar uma das maiores vantagens da empresa do Texas.

 

Desde 2020, mais de US$ 100 bilhões foram investidos na fabricação de veículos elétricos e baterias nos EUA, mostrando os vastos recursos que estão sendo empregados na eletrificação.

 

Também é ainda muito cedo para que a vantagem atual se cristalize. A Tesla produz apenas uma fração dos carros comprados pelos americanos – menos de 5% do total de vendas até agora em 2023. A suposição sempre foi a de que, à medida que a adoção de veículos elétricos aumenta, as montadoras estabelecidas conseguirão, em sua maioria, recuperar seus antigos lugares na hierarquia. Os analistas do

 

Bank of America estimaram em junho que a participação da Tesla no mercado de veículos elétricos dos EUA cairá para 18% até 2026.

 

Mas, até agora, a diferença não está diminuindo, e a tarefa fica mais difícil à medida que cada ano passa sem um modelo elétrico de destaque. Com a escala, vem a eficiência de fabricação; com a eficiência, vem a escala adicional. É o mesmo círculo virtuoso que ajudou um punhado de montadoras poderosas a atuar como guardiãs constantes do setor automotivo no último século.

 

A maior ameaça à supremacia da Tesla vem da China

 

Há apenas uma empresa que compete na escala da Tesla em veículos elétricos: a chinesa BYD. Ela também é o primeiro exemplo de uma empresa estabelecida que fez uma transição bem-sucedida da venda de carros movidos a gasolina para veículos elétricos lucrativos.

 

A história da BYD é única. A empresa começou como fabricante de baterias, produzindo pequenos packs de energia para telefones celulares da Nokia e laptops da Dell na década de 1990. Quando passou a fabricar automóveis, já neste século, o fez com a mentalidade de uma fabricante de baterias. Em 2009, enquanto a Tesla colava baterias no Vale do Silício para seus Roadsters elétricos, a BYD construía ônibus elétricos na província de Hunan.

 

O problema central para as empresas estabelecidas é que elas se tornaram, em grande parte, montadoras de componentes de terceiros. Era fácil supor que, assim como as transmissões e os sistemas de infoentretenimento poderiam ser terceirizados, o mesmo poderia acontecer com os componentes básicos dos veículos elétricos – baterias, motores, software, infraestrutura de carregamento. Mas essa não tem sido uma estratégia vencedora.

 

A BYD não se tornou uma montadora dominante na China até que decidiu, em 2021, parar de fabricar carros sem plugues. A decisão permitiu que a empresa se concentrasse inteiramente nos veículos elétricos e no que era necessário para seu sucesso. Em dois anos, destronou a VW como a marca de carros mais vendida na China; no terceiro trimestre deste ano, a BYD chegou a um ponto de entregar mais veículos totalmente elétricos globalmente do que a Tesla.

 

A ascensão meteórica da BYD mostra que é possível para uma montadora tradicional se tornar elétrica, mas isso pode exigir a eliminação dos produtos e práticas comerciais que antes a tornavam bem-sucedida. Poucos se comprometeram a fazer o mesmo. (O Estado de S. Paulo/Tom Randall)