O Estado de S. Paulo/Mobilidade
Em fevereiro de 2022, o navio Felicity Ace transportava cerca de 4 mil automóveis – boa parte deles com motor elétrico –, quando pegou fogo, no Oceano Atlântico. O episódio levantou a questão se havia sido a bateria de íon de lítio dos veículos, altamente inflamável, a causadora do incêndio. A partir dali, a logística do transporte dos automóveis movidos a bateria entrou no centro das atenções. Como ainda nenhuma montadora fabrica esse tipo de veículo no Brasil, todos os lotes vendidos por aqui são importados e chegam de navio. Ou seja: em tese, estão sujeitos a riscos. A American Bureau of Shipping (ABS), entidade que controla a segurança em alto-mar, redobrou a vigilância para o transporte de carros elétricos nas embarcações. Ela introduziu novos requisitos em suas regras de embarcações marítimas, que incluem sistemas de detecção de incêndio, alarmes e equipamentos de combate ao fogo e provisões associadas à recarga de baterias. Além disso, a fabricante se responsabiliza de fazer uma inspeção pré-embarque para conferir se os veículos estão em conformidade com as exigências de segurança.
Carga perigosa
“As baterias de íon de lítio dos carros elétricos são cargas consideradas perigosas”, explica Rodolfo Boraschi, diretor de auto-mobility da empresa do setor de logística DHL. “O transporte requer cuidados essenciais para evitar explosões e incêndios quando são expostas a determinadas condições de temperatura, manuseio ou armazenagem. É necessário que os envolvidos na operação tenham conhecimento e expertise para lidar com essa situação.” O fenômeno que provoca o princípio de incêndio no transporte dos veículos elétricos chama-se descontrole térmico. “O thermal runaway, ou descontrole térmico, é um acontecimento crítico, o principal perigo que ronda as baterias de lítio, especialmente, quando sofrem algum tipo de falha ou dano”, afirma Carlos Roma, diretor da TB Green, empresa de gestão de frotas elétricas para logística de carga, e membro do Conselho Diretor da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). Ele conta que o aumento exponencial na temperatura dentro da bateria ocorre devido a uma reação química descontrolada. Roma, porém, faz uma ressalva: os casos de incêndio de carros movidos a gasolina são maiores. “Segundo a Associação Nacional de Proteção contra Incêndio, dos Estados Unidos, os veículos com motor a combustão são dez vezes mais propensos a pegar fogo, em comparação aos elétricos. Em 2020, foram registrados 215 mil incêndios em veículos a gasolina, incluindo híbridos, contra 52 casos de elétricos”, revela Carlos Roma. Alerta ao perigo inerente ao transporte dos carros elétricos, a ABS recomenda as seguintes práticas para aumentar a segurança:
- Estocagem adequada: os veículos elétricos devem ser colocados em áreas designadas em navios porta-carros (PCC) ou porta-carros e caminhões (PCTC), com o objetivo de facilitar a detecção precoce de incêndios.
- Recarga segura: a operação precisa acontecer com a utilização de cabos e conectores do navio, com base nas tomadas aprovadas e facilmente desconectáveis em caso de incêndio.
- Detecção de incêndios reforçada: a instalação de sistemas de monitoramento de vídeos e a presença de brigadas de incêndio em áreas com automóveis elétricos são fundamentais para a detecção antecipada e o combate ágil de incêndios. A área onde os carros estão estocados deve conter sprinklers para ajudar a debelar o fogo rapidamente.
- Treinamento da tripulação: a equipe deve ser capacitada para identificar e lidar com riscos associados a automóveis elétricos, como alta voltagem e eventuais liberações de gases tóxicos provenientes da bateria em chamas, cuja temperatura pode chegar a 2.700 ºC.
- Medidas de combate a incêndios: a presença de sistemas fixos de água para cobrir áreas com carros elétricos e o dimensionamento adequado dos sistemas de drenagem são essenciais para a extinção de incêndios. Se, mesmo assim, o descontrole térmico causar incêndio, o navio tem de estar preparado para mitigar as consequências. “Não se pode medir esforços para preservar vidas e a própria embarcação. Afinal, se ela afundar,* haverá um desastre ecológico de grandes proporções”, diz Roma.
Controle de qualidade
Segundo entidades como Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês) e Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata), alguns fatores precisam ser considerados nas operações logísticas, como o tipo e a quantidade de baterias e o peso e a forma que estão dispostas – isoladas ou dentro de algum equipamento. “Ao contrário de veículos de micromobilidade, como scooters e carrinhos de golfe, a bateria não é retirada do automóvel de passeio ou do caminhão quando são transportados de um lugar a outro”, explica Roma. Ele acrescenta que o correto é o componente viajar com metade da carga para impedir o descontrole térmico. “Se estiver com menos, pode ser carregado a bordo”, salienta. O transporte bem-sucedido não termina quando os carros elétricos desembarcam no Brasil. Depois disso, as montadoras realizam uma checagem das baterias para confirmar a procedência e se obedecem todas as especificações técnicas. É uma espécie de controle de qualidade. “Existem as baterias do tipo classe A, aprovadas em todos os testes de qualidade, e classe B, que não são 100% aprovadas, mas que também podem ser encontradas no lote dos veículos. Só profissionais capacitados descobrem isso com auxílio de equipamentos. Nesse caso, a montadora pode recusar e mandar a bateria classe B de volta”, conclui Roma. (O Estado de S. Paulo/Mobilidade/Mário Sário Venditti)