O Estado de S. Paulo
Há cerca de duas semanas, o motorista de aplicativo Vinicius Coroa da Silva Charng decidiu devolver para a locadora o carro 100% elétrico que ele usava para trabalhar em São Paulo, aderindo novamente a um modelo tradicional. O motivo da troca foi a dificuldade diária para “abastecer” o veículo em São Paulo e região. “Fiz as contas e vi que estava perdendo tempo e dinheiro nas filas para carregar o carro. Já fiquei até quatro horas esperando”, afirma Charng. “Se existisse mais estrutura para atender os carros elétricos, com certeza, eu voltaria. Mas por enquanto é impossível trabalhar assim.”
Carregadores quebrados, equipamentos em manutenção, postos de recarga inativos e longas filas de espera são algumas das dificuldades encontradas pelos condutores na hora de “abastecer” esses veículos em São Paulo. A situação fica mais grave no caso dos motoristas de carros por aplicativo que utilizam os elétricos a trabalho. Para eles, ficar parado na rua, à procura de um eletroponto ou na fila para carregar pode significar prejuízo no fim do dia.
Recentemente, Uber e 99 anunciaram iniciativas para eletrificar a frota no Brasil. A expectativa é de que, até o fim do ano, as duas empresas tenham cerca de 500 carros em operação no País – o modelo é incentivado, pois o elétrico é uma ferramenta de marketing e é visto como uma opção ecologicamente mais correta.
Para convencer os motoristas a aderir à ideia, foi oferecido desconto na locação de quem escolhesse transportar passageiros em modelos elétricos. Além disso, em comparação com o alto gasto com gasolina ou do etanol para quem roda o dia inteiro, o abastecimento com o elétrico fica bem mais em conta. Em alguns casos, por meio de parcerias, chega a sair de graça.
Contudo, segundo motoristas, o número de pontos de recarga, principalmente não versão rápida, não tem crescido na mesma proporção na cidade. Atualmente, a capital tem apenas um eletroponto que atende a todos os modelos. Ele fica no Bairro do Limão, zona norte da cidade.
Questionadas sobre os relatos dos motoristas em relação as suas dificuldades diárias de abastecimento, empresas que oferecem carregadores públicos, como Ipiranga, BMW, Volvo e Movida, dizem estar trabalhando para garantir o funcionando das unidades e ampliar os pontos de serviço pela cidade.
Dados da Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABVE) mostram que o Brasil ultrapassou a marca dos 100 mil veículos elétricos, divididos em 114 modelos diferentes, entre 100% eletrificados e híbridos.
Segundo a entidade, entre 2021 e 2022 a rede pública de recarga passou de 1 mil unidades para 2,8 mil pontos no País, um crescimento de 180%, chegando à média de um endereço de recarga para cada 14 veículos nacionais 100% elétricos. Em comparação com os EUA, essa diferença é de uma estação para cada oito carros. “É um avanço brasileiro em termos de recarga veicular elétrica”, afirma Davi Bertoncello, membro do conselho diretor da ABVE. Ainda este ano, a meta é chegar a 3 mil endereços.
“Tanque na reserva é sinal de sufoco”
Para não ficar “na mão”, ou parados na rua, os trabalhadores precisam se organizar para recarregar a bateria dos veículos em casa, no período em que descansam ou enfrentar filas por várias horas nos postos que oferecem o serviço. Isso porque o tempo para completar uma recarga muda a cada tipo de veículo e modelo de carregador, sendo de 40 minutos a 1 hora nos ultrarrápidos e de 5 a 10 horas de espera para as unidades de carregamento lento.
Todos os dias, a motorista de aplicativo Cleunice Lori vai do bairro onde mora até um ponto de recarga rápida da cidade para abastecer o veículo com que trabalha. O carro faz parte de uma parceria com a 99 que tenta eletrificar sua frota. Trezentos veículos serão ofertados a motoristas parceiros no País.
Assim como Chanrg, ela enfrenta filas e diariamente encontra algum ponto de recarga com defeitos espalhados pela cidade. “A falta de estrutura é o nosso maior problema. As empresas disponibilizam o ponto, mas não fazem a manutenção necessária. Nós não temos como saber se aquele endereço está funcionando ou não”, afirma Cleunice.
Conforme relatos de motoristas ao Estadão, a situação fica ainda mais complicada perto do horário de pico, quando muitos condutores buscam os poucos pontos de recarga rápida de São Paulo. “Às vezes, a fila está tão grande que eu acabo dormindo no banco de trás do carro enquanto espero a minha vez de abastecer”, diz a motorista do app 99.
Com poucas opções à disposição, antes de sair de casa os motoristas precisam se preparar e estudar suas rotas para conciliar com os endereços de recarga. Ainda assim, muitos são surpreendidos com equipamentos inoperantes.
No aplicativo Plug Share – utilizado pelos condutores para encontrar os postos da rede pública de abastecimento e avaliar a qualidade da estrutura –, muitos dos endereços da capital recebem frequentemente comentários negativos em relação à experiência de uso. “Fila de três carros. Ponto de carregamento de Uber. Se estiver com pressa, evite”, escreveu um usuário sobre o eletroponto no Limão.
Para Bertoncello, da ABVE, além do trabalho de ampliar a rede pública de carregamento, a entidade tenta fiscalizar a qualidade do serviço prestado nos pontos da cidade. “Muito mais importante que a quantidade de pontos é exatamente a experiência que os usuários de carros elétricos têm ali no ponto de recarga”, diz o executivo.
Carregadores em prédios
São comuns também os relatos de motoristas de aplicativos e utilitários elétricos que começaram a recarregar veículos em determinados estabelecimentos, mas em seguida passaram a ser impedidos de utilizar o serviço pouco tempo depois.
Os motoristas Patrícia Ribeiro e Marcelo Simas, que são namorados, contam que costumavam abastecer suas duas vans de trabalho no estacionamento de um prédio no Itaim Bibi, em São Paulo, mas foram informados de que não podiam mais carregar os veículos ali. Para utilizar o serviço, eles pagavam R$ 15 e deixavam os veículos por cerca de oito horas até completar a carga. “Nós pagávamos, não era de graça. Mesmo assim, pediram para não usar mais o espaço”, afirma Patrícia.
Ela relata que, após questionar o motivo da proibição, o gerente da unidade informou ao grupo de motoristas de utilitários que a decisão havia sido tomada diante das reclamações dos condôminos do prédio sobre a movimentação dos trabalhadores no edifício, que estaria atrapalhando o carregamento de automóveis elétricos dos moradores. “Nesses lugares só tem carros elétricos importados, eles não gostam que os motoristas de van usem o espaço”, diz a condutora.
No aplicativo Plug Share, usuários também descrevem casos de endereços que não aceitam todo tipo de veículo. “Carregador de uso pessoal? Como assim? Não entendi a discriminação”, publicou um motorista sobre o ponto de recarga de uma revendedora de carros de luxo.
Patrícia relata ainda que, devido às dificuldades, além dos motoristas de carros por aplicativos, os condutores de vans eletrificadas também começam a abandonar os modelos e a alugar unidades mais poluentes por causa da comodidade de abastecimento. “Dois amigos desistiram e alugaram vans a diesel. Com um veículo a combustão eu gastaria mais, mas teria mais qualidade de vida”, pontua.
Falta de estrutura pode atrapalhar na adesão dos “elétricos”
As dificuldades enfrentadas pelos motoristas de aplicativo também atingem os condutores comuns, que ficam receosos em aderir aos modelos que não utilizam a queima de combustíveis fósseis. Esse é o caso do psiquiatra Jorge Henna. Durante uma viagem à Noruega, ele alugou um veículo 100% elétrico para se locomover nos passeios de férias. De volta ao Brasil, decidiu procurar modelos no mercado nacional para trocar seu antigo carro a combustão.
O psiquiatra chegou a encomendar um modelo elétrico da Jaguar, mas desistiu no meio do caminho e optou por um veículo tradicional da marca. Ele colocou na ponta do lápis os possíveis problemas relativos à falta de estrutura para recarga. “Você não consegue fazer viagens com o carro porque corre o risco de ficar na rua. Para usá-lo só domesticamente não funciona, porque o investimento é muito alto”, afirma. “Fiz algumas rotas para ver onde haveria pontos de recarga, mas eram poucas opções. E isso fora o tempo de espera.”
Na avaliação do diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Adriano Pires, a falta de infraestrutura para pontos de abastecimento de carros elétricos no País é um reflexo do alto investimento tanto para aquisição dos veículos quanto para implementação da rede de abastecimento. Ele lembra, que no passado recente, o fator que impulsionou a adesão do mercado brasileiro ao etanol foi a facilidade de encontrar o combustível – o que o elétrico ainda não oferece.
Para Pires, outro ponto que atrapalha a expansão da rede pública de fornecimento de energia para carros eletrificados é a concorrência com os modelos flex – abastecidos a gasolina e álcool –, uma vez que o etanol já é um combustível menos poluente que o diesel e gasolina, mas demanda um investimento muito menor tanto da rede de postos quanto dos consumidores. “Aqui o carro elétrico ainda é um item de luxo, e o custo para se construir uma rede nacional de abastecimento seria muito alto”, afirma. (O Estado de S. Paulo/Wesley Gonsalves)