O Estado de S. Paulo
Eram quase 10h de uma manhã de setembro e a neblina ainda encobria grande parte da Represa de Guarapiranga, na zona sul da capital paulista, quando a pequena embarcação despontou no horizonte. O barco trazia o seu idealizador, o aposentado João Carlos Batista, 64 anos, e uma bicicleta.
Batista sai todos os dias do Parque do Terceiro Lago, do outro lado da represa, extremo sul de São Paulo, e percorre meia hora no seu barco, batizado de Mini Toot, até chegar às margens da Avenida Atlântica, na região de Interlagos. Em uma decadente marina, o aposentado atraca a embarcação, descarrega a bicicleta e pedala mais 10 quilômetros até seu escritório, onde gerencia quitinetes alugadas, próximo à Ponte João Dias, também na zona sul.
O aposentado diz ter chegado a uma idade em que só pretende fazer o que gosta. “Não suportava ficar parado no trânsito para dar a volta na represa, gastando combustível e poluindo o ar”, revela, embora consuma 2 litros de gasolina no motor do seu barco, um gerador adaptado, para ir e voltar para casa. “Seria bom mesmo se não poluísse”, sonha ele. Hoje, no Dia Mundial sem Carro, João Batista adere ao movimento sem mudar sua rotina. Celebrado, anualmente, em 22 de setembro, a data tem como objetivo incentivar o uso de meios de transportes alternativos. O evento foi criado por ativistas franceses, em 1997, mas, em pouco tempo, foi adotado em diversos países. No ano 2000, mais de 750 cidades europeias aderiram ao movimento, que busca conscientizar as pessoas sobre os problemas causados pelo uso irrestrito do automóvel particular, como aumento da poluição, enorme gasto de combustíveis e matérias-primas, além do trânsito pesado. No Brasil, 11 cidades fizeram sua primeira versão em 2001, mas só chegou à capital de São Paulo em 2003, com iniciativas da sociedade civil. Porém, só em 2005 (há 16 anos), o evento passou a ter apoio da prefeitura paulistana e a atrair a atenção de outras organizações. Símbolo do uso irracional do carro, a metrópole paulista tem uma frota de 6,2 milhões de automóveis, segundo dados do Detran-sp. O volume representa 11% da frota nacional desse tipo de veículo. Com uma população estimada em 12.396.372 habitantes, segundo o IBGE, São Paulo tem 1 carro para cada 1,9 habitante. É demais.
A ideia de deixar o carro em casa, nem que seja apenas por um dia no ano, apavora muitos paulistanos. Não faltam habitantes na maior metrópole do Hemisfério Sul e centro financeiro do País que não conseguem imaginar sua vida sem automóvel.
Embora insuficiente para suprir a demanda, São Paulo possui uma das maiores malhas ferroviárias do País, com trens e metrô, além de uma grande rede de linhas de ônibus que percorre toda a cidade. Ainda assim, muitos proprietários de automóvel hesitam em trocar o veículo particular pelo coletivo ou por outros meios de locomoção alternativos, como bike ou caminhada.
É claro que só uma minoria da sociedade enfrenta essa realidade, pois, como se sabe, boa parte da população não tem outra opção que não seja o transporte público, que nem sempre consegue atender todos com a eficiência desejada.
Conversamos com pessoas que, pelos mais variados motivos, optaram ou decidiram levar uma vida sem dirigir. São experiências que podem inspirar outros paulistanos a procurar formas mais sustentáveis de se locomover.
1 Saio de rolê
João Batista mora no Parque do Terceiro Lago, há dez anos, com sua segunda esposa, com quem tem dois filhos, já crescidos – é pai também de outros dois, mais velhos, do primeiro casamento. De onde mora, são cerca de 17 quilômetros até a marina, em que atualmente atraca seu barco e começa a pedalar. “De manhã, o trânsito é muito ruim. De carro, eu nem tentei, mas vinha de moto e, mesmo assim, perdia muito tempo”, diz ele.
Paulista da cidade de Tupã, sempre gostou de pedalar e, inicialmente, fazia esses 17 quilômetros de bicicleta. “A Estrada Jaceguava não tem ciclovia e é muito estreita e perigosa. Ficava com medo de ser atropelado pelos carros. Tem tachões no meio da rua e os veículos não conseguem desviar dos ciclistas”, lamenta ele. Foi, então, que decidiu aproveitar a extensa via aquática, oferecida pela represa. Na primeira tentativa, construiu um caiaque com suporte para a bike, mas era cansativo e demorado remar contra o vento e depois pedalar até a transportadora, perto da Ponte João Dias. Decidiu construir seu barco.
Comprou um casco de fibra, encontrou um engenheiro em Itapetininga (SP) que transformava geradores em motor de barco e mandou ele fazer a cabine “para me proteger da chuva e do frio na represa”, conta. Nesse meio-tempo, fechou a transportadora, construiu 11 quitinetes no terreno e, agora, administra o local. “Como a construção é nova, não tem muito problema. Mas, ainda assim, sempre que preciso ir lá, uso o barco e a bike. Brinco que não saio para trabalhar. Saio de rolê”, conta.
2 Nem fui buscar a carta
Pressionada por quase todo mundo, Adriana Figueiredo se inscreveu na autoescola para tirar a Carteira Nacional de Habilitação para dirigir automóveis quando já tinha mais de 20 anos. Ela fez as aulas e, embora não tenha aprendido a dirigir direito, conseguiu passar no teste prático. “Foi uma temeridade, deixei o carro morrer na lombada… Nem sei como fui aprovada. Tanto que, depois, nem busquei a carta”, revela a empresária, hoje com 58 anos, sem, quase nunca, ter dirigido.
Adriana conta que, ao ser aprovada, chegou até a ganhar um VW Fusca do pai, na intenção de incentivá-la a dirigir. “Vendi na mesma semana”, revela. “Não gosto de fazer coisas que não tenho aptidão. E, definitivamente, não sei dirigir bem. Não tenho medo nem nada, mas não é para mim”, confessa a cozinheira de mão-cheia proprietária de uma empresa que organiza jantares e banquetes sob encomenda.
Adriana Figueiredo diz que sempre encontra um jeito para não precisar do carro. “Minha filha ia de perua para a escola. Quando ela ficou mais velha e saía à noite, contratava um táxi de confiança para buscá-la”, explica.
Atualmente, aproveita a geografia plana do bairro de Pinheiros, zona oeste, onde mora, e faz muitas atividades a pé. A banqueteira dá a dica para viver sem carro em São Paulo: “Eu me organizo, simplifico as coisas. Se preciso sair para comprar alguma coisa, faço uma lista e trago tudo de uma vez”.
3 Medo de dirigir
Diagnosticada com ceratocone, doença que atinge a córnea, Fátima Eliane Henriques, 60 anos, usa óculos há muitos anos. “Nunca dirigi, sempre tive receio. E, como o grau dos meus óculos é muito alto, também, fico com medo de não enxergar as coisas”, afirma ela, que jamais se sentou ao volante de um carro.
Moradora do Taboão da Serra, na região metropolitana de São Paulo, Fátima sempre fez tudo de ônibus e metrô, revela. “É rapidinho. Em 40 minutos, eu chego à Dr. Arnaldo e pego o metrô”, diz ela, que elogia os corredores de ônibus das avenidas Francisco Morato e Rebouças, que agilizaram sua locomoção.
Sem emprego desde o início da pandemia, já que trabalhava como caixa em uma casa noturna na Vila Madalena, que fechou, ela não era obrigada a pegar o transporte coletivo nos horários de pico. “Sempre fui no contrafluxo. Enquanto as pessoas voltavam para casa, no Taboão, eu estava indo para São Paulo. E, na volta, tomava o primeiro ônibus, às 5h10, sempre vazio”.
Para fazer compras, opta por mercados que fazem entrega ou, para ir a algum compromisso, hoje em dia, usa os aplicativos de transporte.
4 Manter um carro é caro
Quando o filho José estava para chegar, família e amigos conseguiram convencer Renata Alves de Souza, 33 anos, e seu marido, Pedro Loes, 40, que eles precisariam trocar de carro. “Na época em que nos casamos, eu tinha um e o Pedro, outro. Vendemos e ficamos só com um compacto. Nunca ligamos muito, era algo mais utilitário mesmo”, relembra a produtora executiva.
Mesmo quando arrumou um emprego em uma agência de publicidade na Avenida Faria Lima, deixava o carro na garagem. “Os estacionamentos eram muito caros”, conta ela.
Convencidos pela pressão social, acabaram trocando por um automóvel maior. “Todos diziam que criança tem muita tralha, carrinho, mala, enfim…”, diz a carioca, que mora em São Paulo há cerca de 20 anos. Com o tempo, Renata e o marido perceberam que criança não tem tantas coisas assim. “Com 1 ano, ele foi para escola, que ficava a 1,5 quilômetro de casa, e a gente levava ele a pé. E o carro foi ficando cada vez mais parado.”
Mesmo antes de a pandemia chegar, decidiram se desfazer do veículo. “Fizemos as contas e vimos que não valia a pena manter o carro parado.” Para evitar trânsito e ter de ficar procurando vaga para estacionar, a família sempre usou muito transporte público. “Nossa casa fica perto da Estação Vila Madalena, o que favorece o uso do metrô”, conta.
Atualmente, quando precisa levar o filho ao médico ou a algum outro compromisso, chamam carro por aplicativo. Ao ser perguntada se sente falta do automóvel para alguma atividade, Renata afirma que só quando tem de levar seu cachorro para tomar banho ou para uma consulta no veterinário. “Alguns motoristas de app não aceitam pet. No fim, o carro faz mais falta para o cachorro do que para a criança”, brinca ela.
5 CNH vencida e sumida
“Depois que peguei a carta de motorista, nunca mais dirigi”, afirma Décio Galina, 48 anos, que não se lembra nem onde guardou sua CNH, já vencida. O jornalista se locomove de transporte público desde quando era um jovem atleta lançador de dardo no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa Marechal Mário Ary Pires, próximo ao Ibirapuera.
“Eu era o mais novo e minha mãe me levava de carro. Os atletas mais velhos, um dia, disseram para ela: ‘Não precisa vir buscá-lo, não. A gente vai ensinar o Decinho a pegar ônibus’. Até mesmo na época da faculdade, quando todos os jovens querem ter um carro para sair com as garotas, Décio acabava encontrando amores nas viagens entre paradas e estações. “Qual ônibus tomar, onde descer, qualquer coisa era pretexto para puxar assunto”, revela. “As pessoas não tinham celular, então ficavam de cabeça erguida e trocavam olhares. Era mais fácil conhecer alguém no metrô”, diz, saudoso.
Atualmente em seu segundo casamento, Décio tem dois filhos, Nicolas, 14 anos, da primeira união, e Felipe, 7, do relacionamento atual. “Minhas duas esposas dirigem, o que evitou que eu precisasse guiar, pois acho que, com filhos, é preciso ter carro para as tarefas do dia a dia”, diz. Privilegiado também por ter sempre morado perto de estações de metrô, admite, Décio curte levar os filhos para passear de transporte público. “Eles adoram. Acho interessante mostrar a diversidade da cidade de São Paulo. Sair da bolha”, acredita Décio Galina. (O Estado de S. Paulo/Mobilidade/Arthur Caldeira)