O Estado de S. Paulo/Mobilidade
O desenvolvimento dos carros elétricos, que a cada ano ganham mais espaço no mercado automotivo mundial, tem um importante aliado: as corridas da Fórmula E, categoria que nasceu em 2014 e é disputada exclusivamente por monopostos com propulsão elétrica sempre em circuitos de rua. Assim como já ocorreu na Fórmula 1 no passado, a Fórmula E é uma espécie de laboratório para novas experiências que, a curto prazo, poderão ser empregadas nos automóveis.
As montadoras estão de olho nesse terreno fértil de possibilidades. Marcas como Nissan, Porsche, Jaguar, Mercedes, Audi, BMW e Mahindra mantêm equipes e investem na competição para tirar proveito de tecnologias inovadoras que poderão aprimorar os veículos elétricos.
Em certos casos, os experimentos fazem parte de uma via de mão dupla. As fabricantes adotam, na Fórmula E, determinadas ideias que já utilizavam nos carros, como o sistema de recuperação de energia durante a frenagem. “Cerca de 90% da energia da frenagem é resgatada”, afirma Leandro Rodrigues Sabes, gerente de produto e preço da Porsche. A ideia é que, aplicadas em condições mais severas nas pistas, as soluções técnicas retornem mais evoluídas para posterior utilização nos modelos que chegarão às mãos do consumidor.
Uma das maiores conquistas da Fórmula E, em sete temporadas de história, diz respeito ao armazenamento de energia. Antes, os pilotos precisavam usar dois carros, em cada corrida, por causa da baixa autonomia da bateria. A corrida tinha uma troca programada: quando a carga já estava no limite, os pilotos assumiam o volante de outro carro para seguir na prova.
Hoje, a média de 100 quilômetros de cada etapa percorridos em 45 minutos é completada com o mesmo monoposto. “As baterias comportam mais energia, sem aumentar o peso ou ocupar mais espaço no carro”, afirma Humberto Gomez, diretor de marketing da Nissan. “Tamanho menor com melhor eficiência é a equação ideal para adotarmos no Nissan Ariya, SUV elétrico de alta performance da Nissan.”
Menos peso, mais eficiência
Um grande desafio, aliás, é balancear a relação “aumento da capacidade de armazenamento das baterias versus peso”. Bateria excessivamente pesada é sinônimo de perda de eficiência. “Existem quatro ou cinco grandes fabricantes globais de bateria. Quando elas alcançarem esse compromisso, a escala aumentará e os custos baixarão”, diz Wilson de Morais, gerente de produtos para mobilidade da ABB, empresa suíça de tecnologia e eletrificação que fornece os carregadores para a Fórmula E. “Até pouco tempo atrás, os carros tinham baterias com capacidade de 15 kwh. Hoje, elas são de 40 kwh, 60 kwh, até 90 kwh.”
A bateria de 20 kwh do carro da Fórmula E – chamado de Gen2 (segunda geração) – foi substituída pela de 54 kwh e 900 volts de tensão, que rende até 250 kw, o equivalente a 335 cv de potência. A realimentação acontece em carregadores ultrarrápidos de 175 kw e 350 kw, muito mais velozes para deixar a bateria com carga total.
A maioria das fabricantes que vendem carro elétrico no mercado brasileiro usa carregadores de 22 kw, que demora 25 minutos para carregar 80% da bateria. Apenas a Porsche tem uma unidade de 350 kw em uma concessionária de São Paulo.
Mas, com o aperfeiçoamento desse tipo de aparelho e a redução do custo, é de se imaginar que os carregadores ultrarrápidos não se limitarão aos circuitos da Fórmula E. “O carregador ultrarrápido foi desenvolvido na Fórmula E. Em oito minutos, ele regenera a bateria com carga suficiente para andar 200 quilômetros”, afirma Morais.
Nem sempre, porém, a intenção da marca é testar novas tecnologias. “Às vezes, o objetivo se restringe a avaliar determinados componentes para verificar se ele suporta o rigor de uma corrida”, atesta Leandro Sabes, da Porsche. Um exemplo são os pneus, que devem ganhar durabilidade para conduzir o carro até o fim da corrida.
Pneus com material resistente
Não adianta o veículo despejar muita potência sem ter o controle proporcionado pelos pneus. “Assim como os carros elétricos de rua, os da Fórmula E se caracterizam pelo torque imediato, que faz o carro disparar quando o motorista pisa no acelerador. Esse comportamento dinâmico exige mais dos pneus”, revela Humberto Gomez.
Além disso, a bateria instalada no assoalho do carro deixa o centro de gravidade muito baixo, jogando mais pressão nas bandas laterais dos pneus. “Essas exigências estão fazendo as fabricantes de pneu estudarem matérias-primas mais resistentes, que poderão ser transferidas aos automóveis”, acredita Morais, da ABB.
Para ele, o torque máximo instantâneo pode levar ao aperfeiçoamento de outro item importante: os bancos. Quando o carro de corrida ganha velocidade rapidamente, o corpo do piloto tende a grudar no encosto do banco. Dessa forma, quanto mais ergonômico ele for, maiores o conforto e a sensação de bem-estar a bordo.
Não por acaso realizada apenas em circuitos de rua para associar a imagem do carro elétrico à mobilidade urbana, a Fórmula E também é um campo vasto de estudos para aumentar a segurança dos automóveis. A bateria encapsulada abaixo do cockpit está bem protegida para evitar o risco de combustão em uma colisão. Nos carros, ela se “esconde” no assoalho, igualmente bem guardada.
Segundo Leandro Sabes, há, na Porsche, uma interação estreita entre as engenharias de automobilismo e os carros de rua, que acabou resultando em uma triangulação. O protótipo Porsche 919 Hybrid, de Le Mans, contribuiu com algumas boas sacadas para o Taycan, esportivo 100% elétrico da marca, que, por sua vez, as repassou ao monoposto 99X, da Fórmula E.
Ele destaca a importância do gerenciamento térmico nos modelos elétricos. “Tudo o que você menos precisa em um veículo elétrico é ter superaquecimento. Por isso, a refrigeração da bateria e dos sistemas internos para controlar a temperatura é fundamental, nos carros da Fórmula E, para nos dar subsídios na aplicação no carro de rua”, completa. (O Estado de S. Paulo/Mobilidade/Mário Sérgio Venditti)