Brexit e carros elétricos põem em risco indústria automobilística britânica

O Estado de S. Paulo/The New York Times

 

Aston Martin, Austin-Healey, Jaguar, Lotus, Triumph, MG. Estas são apenas algumas das lendárias marcas de automóveis que saíram das fábricas britânicas ao longo dos anos.

 

A lista de carros britânicos que realmente fazem dinheiro é muito mais curta. E, agora que o Reino Unido está de fato fora da União Europeia, pode estar prestes a diminuir ainda mais.

 

O acordo do Brexit acertado com a União Europeia no mês passado evitou tarifas através do canal que teriam sido desastrosas para a fabricação de automóveis na Grã-Bretanha. Mas o pacto criará mais papelada alfandegária e desacelerará as cadeias de abastecimento, ao mesmo tempo em que desestimulará as montadoras globais a continuar investindo nas fábricas britânicas à medida que começarem a se reequipar para produzir veículos elétricos.

 

Uma disposição do acordo que entra em vigor em 2027 pode levar a tarifas punitivas sobre carros fabricados no Reino Unido com baterias importadas. Nesse caso, a Grã-Bretanha seria excluída da tecnologia do futuro, preparando o cenário para um declínio no longo prazo. A perda de empregos resultante, facilmente na casa das dezenas de milhares, seria uma manifestação severa do custo econômico do Brexit.

 

“O acordo da Brexit foi melhor do que o esperado, mas tem uma série de armadilhas”, disse Andy Palmer, ex-presidente-executivo da Aston Martin e agora vice-presidente da InoBat Auto, uma startup de baterias.

 

Se o governo britânico não tomar medidas para evitar essas armadilhas, em particular promovendo uma indústria doméstica de baterias, Palmer disse, “haverá um risco mortal para a economia automobilística britânica”.

 

Alguns executivos do setor automotivo já estão questionando se faz sentido construir carros na Grã-Bretanha quando a atual geração de modelos chegar ao fim de seu ciclo de vida nos próximos anos. O governo britânico planeja proibir a venda de novos carros a gasolina e diesel a partir de 2030, uma medida elogiada por grupos ambientalistas, mas duramente criticada pela indústria automotiva.

 

Carlos Tavares, presidente-executivo da Stellantis, a nova empresa formada a partir da fusão da Fiat Chrysler e com a Peugeot, disse a repórteres durante uma teleconferência na semana passada que a proibição desencorajaria a empresa de colocar dinheiro em suas fábricas britânicas.

 

“Se nos dizem que em 2030 os motores de combustão interna não podem ser vendidos no Reino Unido, não vamos mais investir em motores de combustão interna”, disse Tavares.

 

A alternativa seria fabricar veículos elétricos na Grã-Bretanha, mas Tavares questionou se a conta fecharia. “O maior mercado está no lado da Europa continental”, disse ele. “Talvez faça mais sentido construir no continente.”

 

Tavares enfatizou que nenhuma decisão foi tomada sobre as operações da Stellantis na Grã-Bretanha. Mas seus comentários são um mau presságio para uma fábrica da Stellantis em Ellesmere Port, perto de Liverpool, que constrói modelos médios das marcas Opel e Vauxhall e emprega cerca de mil pessoas.

 

Atualmente, a Grã-Bretanha detém uma fatia do mercado de carros elétricos, o segmento que mais cresce na Europa. A Nissan constrói seu carro elétrico compacto Leaf em Sunderland, no norte da Inglaterra, em um complexo que também produz SUVs compactos. A Nissan disse na semana passada que seu fornecedor de baterias, Envision AESC, iria atualizar uma fábrica em Sunderland para produzir uma bateria mais potente para o Leaf.

 

Nissan

 

“Estamos comprometidos com a Sunderland por um longo prazo”, disse Ashwani Gupta, diretor de operações da Nissan, à BBC. É um bom sinal para as 6 mil pessoas que trabalham para a Nissan em Sunderland. Mas a Nissan está planejando construir seu carro elétrico de próxima geração, o Ariya, no Japão, e não se comprometeu a construir o SUV movido a bateria em Sunderland.

 

“Aí temos uma luz amarela piscando”, disse Palmer. “Se eles não vão fazer o carro elétrico da próxima geração em Sunderland, e tudo está ficando elétrico, isso é uma preocupação”.

 

A Grã-Bretanha já foi uma das principais produtoras de carros do mundo, com seu glamour exemplificado em marcas como Rolls-Royce e Bentley, bem como o modelo armado do Aston Martin de James Bond. Mas a produção de automóveis chegou ao auge em 1972 e, desde então, vem descendo a ladeira. Marcas como Rover, Austin-Healey ou Sunbeam, muito admiradas, mas apenas intermitentemente lucrativas, desapareceram. A MG, antes conhecida pelos carros esportivos de dois assentos, pertence à montadora chinesa SAIC, que usa o nome da marca em uma linha de SUVs.

 

Quase todas as montadoras britânicas sobreviventes pertencem a empresas estrangeiras de presença global, capazes de transferir a produção para onde esta for mais eficiente. A Toyota, que fabrica Corollas em Derbyshire e emprega 3 mil pessoas, é outro exemplo.

 

A capacidade de exportar é crucial; 80% dos carros produzidos na Grã-Bretanha são vendidos no exterior. O Brexit representou outro retrocesso para a produção de veículos britânica. Quatro anos de incertezas em relação aos termos do divórcio da Grã-Bretanha em relação à União Europeia em meio a um declínio global nas vendas de carros ofereceram pouco incentivo para a modernização das fábricas de automóveis britânicas ou sua adaptação para os modelos da próxima geração.

 

A produção britânica de carros teve queda de 14% em 2019 ante o ano anterior, um declínio maior do que o observado em todos os outros principais países fabricantes de automóveis, com exceção do Irã. A Grã-Bretanha encerrou o ano na 16.ª posição entre os países fabricantes de automóveis, perdendo para a República Checa, produzindo 1,4 milhão de carros e caminhonetes, de acordo com a Organização Internacional de Fabricantes de Veículos Motorizados. E isso foi antes de a pandemia derrubar as vendas de carros em todo o mundo.

 

Carro elétrico da Mini

 

A produção de automóveis no país vai cair ainda mais em julho quando a Honda fechar em Swindon uma fábrica que produz o Civic, a única montadora da empresa japonesa na Europa. As fracas vendas da Honda no continente foram o principal motivo do fechamento, que deixará 3,5 mil pessoas desempregadas, mas o Brexit provavelmente interferiu no processo, dizem os analistas.

 

Mesmo se a Grã-Bretanha não está mais entre os pesos-pesados da manufatura de carros, a indústria ainda é uma parte importante da economia britânica, empregando 168 mil pessoas. Com frequência, as fábricas se situam em lugares como Sunderland, onde há poucos grandes empregadores.

 

A maioria das montadoras deixou em aberto os planos para suas operações britânicas. “Contamos com a continuidade do sucesso das nossas operações britânicas de design, engenharia e manufatura, que atendem ao mercado europeu há mais de 30 anos”, disse a Nissan em comunicado.

 

A BMW disse receber com bons olhos o acordo do Brexit, mas acrescentou em comunicado: “Uma avaliação completa da importância do tratado só pode ser realizada após a publicação de todos os seus detalhes.”

 

Para os fãs dos carros britânicos, é difícil manter o otimismo. “Restou-nos apenas a parte velha da indústria, com os motores de combustão interna”, disse Peter Wells, professor de negócios da Universidade de Cardiff, no País de Gales. “Ela acabará chegando ao fim”. (O Estado de S. Paulo/The New York Times/Jack Ewing/Tradução de Renato Prelorentzou e Augusto Calil)