Diário do Transporte
Quando o Pró-Álcool ou Programa Nacional do Álcool foi criado em 14 de novembro 1975, pelo decreto n° 76.593, o principal objetivo era reduzir a dependência do Brasil em relação ao petróleo, em especial após a crise internacional deste tipo de combustível, que começou em 1973 e se tornou ainda mais grave em 1979.
Foram vários modelos de carros que começaram a surgir a partir dos incentivos dados pelo governo brasileiro à produção e ao consumo do álcool como combustível.
De acordo com a história automobilística brasileira, divulgada pela Anfavea – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, o primeiro automóvel produzido em série com motor a álcool foi o modelo Fiat 147, lançado em 1979.
No mesmo ano, o álcool passou também a ser aplicado em veículos pesados.
Em 1979, a General Motors lançou um motor a álcool para ônibus e caminhões, de 6 cilindros e 170 cavalos. Uma das experiências mais marcantes foi neste mesmo ano, quando a Viação Urubupungá, de Osasco, testou um Monobloco Mercedes Benz O 364 com álcool aditivado. O veículo, prefixo 1070, rodou por alguns meses, na linha intermunicipal Ponte Pequena – São Paulo X Barueri. Foi sucesso para época, mas após alguns anos de uso, começou a apresentar problemas na operação, como menor rendimento em relação aos outros ônibus a diesel convencionais. O veículo foi chamado na época de “Pinguinha da Urubupungá”
O “Pinguinha” da Urubupungá. O Monobloco Mercedes-Benz O-364 que entrou para a história do Pró-Álcool.
O que nasceu com pretexto majoritariamente econômico, logo ganhou um apelo ambiental.
Segundo dados AIE – Agência Internacional de Energia, a utilização de etanol produzido a partir da cana-de-açúcar reduz em média 89% a emissão de gases responsáveis pelo efeito estufa – como dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (NO2) – se comparado com a gasolina.
Mas será que o uso do etanol só traz vantagens ambientais?
Um estudo publicado na Revista Nature do pesquisador da Universidade Nacional de Cingapura, Alberto Salvo e do físico- químico da Universidade Northwestern, Franz Geiger, sugere que o etanol usado em veículos pode causar problemas ambientais que vão muito além do plantio e queima do que restou da colheita da cana-de-açúcar.
Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores internacionais analisaram a situação de São Paulo.
De acordo com o trabalho, de 2009 a 2011, houve uma elevação no preço do etanol enquanto que o governo mantinha política de controle de preços dos derivados de petróleo para conter a inflação. As pessoas começaram a consumir mais gasolina de novo. O uso do combustível à base de petróleo subiu de 42% para 68% entre os veículos leves.
Ainda de acordo com o monitoramento dos pesquisadores, enquanto o consumo do etanol nos veículos estava alto, também aumentou a quantidade de Ozônio – O3, que é um poluente urbano que pode causar graves problemas respiratórios. O ozônio O3 se forma quando a luz solar desencadeia reações químicas envolvendo hidrocarbonetos e óxidos de nitrogênio emitidos pelos veículos.
Os pesquisadores, com base nos dados das estações oficiais de monitoramento do ar, perceberam que enquanto o consumo de gasolina subiu , houve uma queda de 15 microgramas por metro cúbico (15 µgm -3 ) na concentração de ozônio ao nível do solo, para baixo a partir de uma média de 68 dias da semana µgm -3 .
O estudo deixa bem claro que não é uma questão de defender a gasolina ou qualquer outro derivado de petróleo, que também trazem sérios problemas ambientais, como o aumento dos níveis de óxidos de nitrogênio, substância responsável diretamente por graves males à saúde pública. Entretanto, o estudo de 2014, alerta para necessidade de mais cautela em relação à classificação do etanol como combustível verde.
A discussão atualmente ganha importância diante da licitação dos transportes coletivos na cidade de São Paulo. Uma das opções para os ônibus emitirem menos gás carbônico são os modelos a etanol. Se as conclusões do estudo estiverem acertadas, esta também deve ser uma discussão em relação aos transportes coletivos.
O Diretor da L’Avis Eco-Service, especialista em transporte sustentável, que também é fundador e Secretário Executivo da Comissão de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, Olimpio Alvares, se preocupa em relação ao etanol e ozônio. O especialista disse ao Diário do Transporte que defende a realização de outros estudos. Olimpio também diz que o diesel também é perigoso quanto ao ozônio. “O diesel também contribuiu para a formação do ozonio, porque o NO2, contido no NOx – gerado pelo combnistível, é um precursor da formação do O3. Portanto, do ponto de vista do O3, quanto menos diesel melhor também”
Confira o artigo técnico:
Além do MP, cujo risco de aumento expressivo dos índices de morbi-mortalidade por doenças cardiorrespiratórias não é exatamente uma novidade, o estudo aponta um outro evidente e grave risco à saúde pública na terra das jabuticabas: os altos níveis de O3 persistem, em que pesem os programas de controle de emissões de veículos novos e de combustíveis alternativos.
A presença na atmosfera de substâncias como os aldeídos e o etanol não queimado, devido ao uso automotivo do álcool em larga escala – adicionado à nossa gasolina, e no estado puro nos veículos flex – pode ser uma provável causa da persistência histórica das altas concentrações do ozônio na atmosfera da área metropolitana de São Paulo, ao contrário do que tem sido sugerido há décadas na defesa da política nacional de uso desse biocombustível.
Outras cidades do mundo que não usam biocombustíveis em larga escala, como Los Angeles e a própria Cidade do México, conseguiram reduzir o ozônio desde a adoção dos catalisadores nos veículos leves no início da década dos anos noventa. Trata-se, porém, de um complexo fenômeno fotoquímico relacionado com fatores locais conjunturais, climáticos e meteorológicos, o que torna imprópria a comparação do caso de São Paulo com qualquer outra cidade do planeta; mas a queda gradual do O3 nessas cidades, não deixa de ser um indício a ser registrado.
Refiro-me, entretanto, ao surpreendente estudo publicado na Revista Nature de pesquisadores de Londres e Illinois, Alberto Salvo e Franz Geiger, que analisa a serie histórica dos níveis de ozônio na área metropolitana de São Paulo, cotejada com a serie histórica do consumo relativo de gasolina/etanol na região ao longo dos últimos anos. O estudo levanta indícios preocupantes sobre uso de biocombustíveis em larga escala, dada a suposta influência positiva e relevante na formação do ozônio.
Os defensores do etanol combustível e os organismos ambientais e de saúde pública brasileiros deveriam preocupar-se seriamente em patrocinar um estudo profundo para tentar provar que esses pesquisadores estariam supostamente equivocados. Enquanto não o fazem, a ciência oficial seguirá apontando o suposto equívoco ambiental numa das principais políticas públicas do tipo “jabuticaba” do País: o Proálcool.
A única ação (passiva) observada até este momento, da parte dos representantes dos produtores de etanol, especialistas e autoridades oficiais, tem sido a simples negação dos graves indícios e a reiterada acusação pública, carente de fundamentação, da suposta incompetência dos pesquisadores. Falta, portanto, numa situação de tamanha relevância para a saúde de dezenas de milhões de brasileiros que habitam as grandes metrópoles, uma justificativa científica plausível e consistente, à altura do estudo da Nature.
Na opinião de alguns cientistas da área das ciências atmosféricas, brasileiros e internacionais, com quem já tive a oportunidade de debater o tema e o estudo da Revista Nature, a metodologia usada parece ser consistente e sinaliza algo bastante preocupante para as populações de grandes cidades brasileiras.
Assim, já passa da hora de a comunidade técnica ambiental no Brasil, em parceria com os produtores de etanol, a indústria automotiva e o setor acadêmico, tirarem a cabeça de avestruz da terra e proporem um estudo cientifico de alto nível para investigar o reportado fenômeno da redução expressiva dos níveis de ozônio, proporcional ao aumento relativo do consumo de gasolina em relação ao etanol, conforme ocorrido nos últimos anos, quando houve uma inversão no padrão de consumo do etanol em função do preço congelado da gasolina.
Um eventual saudável contraponto ao estudo da Revista Nature, seria o mínimo que os setores ambiental, saúde, automotivo e dos produtores de etanol poderiam produzir, diante desse delicado momento crucial, onde o novo Regime Automotivo (Rota 2030) está na iminência de inundar as ruas brasileiras com incentivos fiscais aos veículos flex movidos predominantemente a etanol hidratado.
O polêmico estudo da Nature pode ser lido aqui (em inglês):
(Diário do Transporte/Adamo Bazani, Artigo: Olimpio Alvares, Diretor da L’Avis Eco-Service, especialista em transporte sustentável, inspeção técnica e emissões veiculares; concebeu o Projeto do Transporte Sustentável do Estado de São Paulo, o Programa de Inspeção Veicular e o Programa Nacional de Controle de Ruído de Veículos; fundador e Secretário Executivo da Comissão de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP; Diretor de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades – SOBRATT; consultor do Banco Mundial, da Comissão Andina de Fomento – CAF e do Sindicato dos Transportadores de Passageiros do Estado de São Paulo – SPUrbanuss; é membro titular do Comitê de Mudança do Clima da Prefeitura de São Paulo; colaborador do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama, Instituto Saúde e Sustentabilidade, Instituto Mobilize, Clean Air Institute, World Resources Institute – WRI-Cidades, Climate and Clean Air Coalition – CCAC, do International Council on Clean Transportation – ICCT e do Ministério Público Federal; é ex-gerente da área de controle de emissões veiculares da Cetesb, onde atuou por 26 anos; faz parte da coordenação da Semana da Virada da Mobilidade)