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Lendas brasileras
Imagem: ilustração de Rodrigo Rosa

Conta a lenda que vivia em uma pequena cidade de nome São Tomé, no Rio Grande de Sul, fronteira do Brasil com o Uruguai, um humilde sacristão. Servindo aos santos padres na igreja local, seu lazer resumia-se à contemplação preguiçosa do movimento das águas do pequeno rio existente nas proximidades.

Em um desses momentos de descanso, em que tudo parece igual e o tempo se consome na rotina por vezes insuportável, o sacristão notou algo diferente acontecendo nas águas do rio. Um borbulho, a princípio quase imperceptível, mas que foi aumentando até parecer que a água do rio estava fervendo.

Primeiro curioso, depois apreensivo, ele viu um clarão muito fraco dentro d’água, como se uma lanterna se acendesse no fundo do rio. E o clarão começou a subir, buscando a superfície em direção ao sacristão, que recuou assustado. Entre o barulho do borbulhar da água do vento nas árvores e de seu coração em disparada, o sacristão quase perdeu os sentidos quando a luz atingiu a terra transformando-se num Teiniaguá, lagarto encantado com uma pedra preciosa de brilho ofuscante incrustada na cabeça.

Imagem: ilustração de Rodrigo Rosa
Imagem: ilustração de Rodrigo Rosa

Passado o susto, como o bicho permanecesse ali, o sacristão aproximou-se e capturou-o com cuidado, enquanto se lembrava das velhas histórias. Elas diziam que o homem que aprisionasse o lagarto encantado seria levado até a Salamanca do Jarau, uma espécie de furna escondida no cerro do mesmo nome, abarrotada de tesouros.

Cuidadosamente escondido, o sacristão levou então o Teiniaguá para seu quarto na casa dos santos padres. Ali, sonhando com as fortunas que o futuro lhe reservava, preparou-se para alimentar o animal. Ao libertá-lo, porém, tomou outro susto: um tremor, um clarão, uma explosão abafada e o lagarto feio, enrugado e frio desapareceu, surgindo em seu lugar uma linda mulher.

Pobre sacristão. Calado pelo espanto, em seu pobre e despojado quarto, recebeu como num sonho uma princesa. Linda como jamais vira outra mulher, corpo intocado, olhos profundos e brilhantes, cabelos negros encaracolados, uma verdadeira deusa em sua formosura.

Encostado em uma parede, olhos esbugalhados, ele a ouviu falar. Que voz maravilhosa! Ela disse-lhe ter sido encantada pelo demônio, tendo como sina permanecer sob a forma de lagarto guardando os tesouros encantados da Salamanca do Cerro do Jarau.

Imagem: ilustração de Rodrigo Rosa
Imagem: ilustração de Rodrigo Rosa

Agradecida por ter sido recebida com ternura pelo sacristão, ela garantiu-lhe que dali em diante seria seu par. Assim, aos olhos estupefatos do sacristão, seu humilde quarto transformou-se no mais rico castelo, naquela noite e em todas as outras subsequentes. A cama dura, os lençóis puídos, as paredes rachadas e a fraca lamparina pareciam ouro, seda e cristal.

Encantado pelo luxo de sua alcova e pela beleza da mulher, o sacristão sucumbiu à fraqueza da carne e deitou-se com sua princesa. Conheceu então os prazeres que imaginava reservados apenas aos deuses. Mas, ao amanhecer, a bela mulher desaparecia, deixando o sacristão extenuado, com a face cavada de olheiras.

Trabalhando de dia e amando à noite, ele passou a comportar-se como quem tem a cabeça nas nuvens. Na missa, passou a trocar os améns. E o remorso corroía-lhe a alma quando o padre absolvia o povo de pecados que, comparados aos seus, nem pecados eram.

Uma noite a mulher disse que queria provar do vinho santo utilizado pelos padres na missa. Embriagado pela paixão, o sacristão concordou em levá-la até o altar. De boca em boca, transbordante de vinho, o cálice sagrado foi passando, alimentando os desejos e deixando o casal abraçado, ali mesmo, como em um ninho de amor. Naquela noite, o sagrado altar não ouviu as preces dos fiéis, mas os sussurros dos amantes.

Imagem: ilustração de Rodrigo Rosa
Imagem: ilustração de Rodrigo Rosa

Dia claro. Primeiro ele ouviu uns murmúrios, depois abriu os olhos com dificuldade, sem saber onde estava. Rodeado pelos padres, cabelo em desalinho, roupa amassada, despertou envergonhado e aterrorizado. A vasilha de mel do Teiniaguá permanecia sobre o altar e o cálice de vinho jazia entornado sobre o oratório. No ar, um inconfundível e acusador cheiro de mulher.

Bombardeado de perguntas sobre o mal feito, o sacristão não falou. Mesmo ameaçado pelos castigos que poderiam levá-lo à morte, ainda assim manteve-se em silêncio. Mais do que o medo dos homens, o pavor da possibilidade de não mais poder encontrar o Teiniaguá encantado calou o sacristão, que acabou escorraçado e condenado à morte. E ali, diante da multidão, derramou lágrimas de adeus à sua paixão.

Nesse momento, uma ventania varreu a poeira e sacudiu as árvores. Um trovão fez tremer o céu no qual nuvens vindas não se sabe de onde abreviaram o dia para fazer cair a noite. E, de dentro do rio, surgiu então o Teiniaguá, com o brilho da pedra preciosa de sua cabeça cegando os homens.

Imagem: ilustração de Rodrigo Rosa
Imagem: ilustração de Rodrigo Rosa.

Apavorado, o povo fugiu seguindo os padres em direção à cidade. E o Teiniaguá encantado juntou-se a seu amado, seguindo com ele para os lados do Cerro do Jarau, onde, unidos pela paixão, os dois amantes passaram a viver guardando até hoje as riquezas ocultas na Salamanca do Jarau.

Origem da lenda

Essa lenda surgiu no Rio Grande do Sul, ao norte da cidade de Quaraí, na fronteira do Brasil com o Uruguai, em uma localidade chamada Cerro do Jarau. Ela nos remete aos tempos em que os padres jesuítas espalhavam pelo interior do Brasil uma forte influência. Em decorrência, surgiram verdadeiras cidades em torno dos mosteiros fincados nas regiões mais remotas do país.

A Salamanca da lenda é uma furna, guardada por um lagarto (Teiniaguá), que estaria abarrotada de tesouros, mas cuja procedência não se conhece.

No Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo, é citada como origem provável da lenda a existência na cidade de Salamanca, na Espanha, de subterrâneos onde eram ensinadas ciências mágicas. A fama da cidade na Europa transformou o termo “covas de Salamanca” em sinônimo de local que continha segredos maravilhosos.

Ainda em comum com a lenda, o professor das covas de Salamanca, nos idos de 1322, era um sacristão chamado Clemente Potosi. Talvez por esse motivo, em toda a América Latina registrem-se histórias que apontam Salamancas como depósitos de grandes riquezas, principalmente nas regiões influenciadas pela colonização espanhola.

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