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Imagem: Maurício Clareto

A jornalista Eliane Brum sempre olhou para a vida e para as pessoas de uma maneira diferente. Nascida em Ijuí, no Rio Grande do Sul, lembra que ainda na infância olhava para as luzes acesas dentro das casas dos moradores da cidade e imaginava como cada um vivia, o que os fazia rir ou chorar. Formou-se em jornalismo pela PUC e logo começou a trabalhar no jornal Zero Hora, em Porto Alegre, onde ficou por 11 anos. No jornal, fez um dos trabalhos que considera como dos mais especiais que já realizou: “A vida que ninguém vê” – uma coluna publicada nas edições de sábado no final dos anos 90 contando histórias da vida real. “Sempre gostei das histórias pequenas e comuns. Na coluna, eu tinha liberdade para escrever do meu jeito. Eu também fui transformada por esse trabalho e aprendi muito com todas as pessoas e suas histórias.” No final de 2006, os textos de “A vida que ninguém vê” viraram um livro com o mesmo nome, recheado de 21 histórias emocionantes, alegres, dramáticas. Impossível é ler e não se emocionar. Em 2000, a jornalista recebeu o convite para ser repórter especial da revista Época, em São Paulo. Aceitou o desafio e lá está até hoje. Com vocês, um pouco mais de Eliane Brum:

Qual o segredo para encontrar histórias tão interessantes no dia-a-dia?

Para encontrar histórias para a “A vida que ninguém vê”, às vezes, eu simplesmente perambulava pela rua. Lembro-me de uma vez, em que sentei na Rua da Praia e esperei a primeira pessoa que viesse falar comigo. Veio um menino, que estava junto com seu irmão menor, ele viu o meu bloco e perguntou se eu era repórter. Ele disse que estava angustiado e queria contar a história dele. Era um chefe de família precoce, tirando o lugar do próprio pai dentro de casa. Lembro que fui com ele até a sua casa, e era uma casa muito simples, o pai estava sentado na única poltrona. O menino chegou em casa, o pai levantou, e ele é que sentou na poltrona. Como contar uma história dessas?

Capa de "A vida que ninguém vê" Imagem: Divulgação
Capa de “A vida que ninguém vê”
Imagem: Divulgação

Como você lida com a responsabilidade que envolve contar a vida de alguém?

Para mim, a responsabilidade de entrevistar uma pessoa e recontar sua história de vida é o que pesa mais, o que me faz mais sofrer, e também é a melhor parte de ser jornalista. Acho que a gente não entra na vida dos outros impunemente, somos transformados pelo contato com o outro, pelo o que vemos, pelo que ouvimos. Quando termino a apuração, me sinto extremamente responsável. Tantas coisas neste processo exigem tanta responsabilidade, contar a história de alguém é muito importante. É, ao mesmo tempo, o que me move e me faz sofrer. No processo entre a apuração e a escrita do texto, perco o sono, tenho insônia, fico pensando se eu vou conseguir e, depois do texto pronto, fico com medo de não ter conseguido. Fico acordando no meio da madrugada, pensando se poderia ter contado determinada coisa de um outro jeito. Isso até a pessoa me falar que leu, que se enxergou, que gostou da matéria. Não entendo os jornalistas que não percebem a responsabilidade que vem junto com nosso trabalho. Nós que entramos em contato com o entrevistado, e é em nós que ele confia, para que contemos direito sua história.

No livro “A vida que ninguém vê”, há algumas histórias difíceis, fortes. Como conduziu os momentos de vulnerabilidade dos entrevistados?

Nas entrevistas, tento lidar com delicadeza com os momentos de vulnerabilidade dos entrevistados. Quando estou cruzando os limites, tenho um faro que me diz para parar de perguntar. Eu faço questão de dizer que não arranco nada de ninguém. As pessoas só me contam porque querem contar, ou porque sabem que vou tratar os assuntos mais difíceis com delicadeza. Às vezes, deixo de fazer aquela pergunta que talvez fosse chave na entrevista, porque posso até colocar o entrevistado em risco, e não tenho esse direito. Nenhuma matéria é mais importante do que as pessoas. Quando fiz a matéria sobre as mães do tráfico, entrevistei uma mulher que havia perdido os dois filhos, e o marido estava no hospital. Ele culpava ela pela morte dos filhos, e batia muito nela por causa disso. Um pouco antes de sair da casa dela, confirmei se podia colocar seu nome na história, se não havia risco. Ela disse que eu poderia colocar, sem medo, “é tudo verdade mesmo”, disse. Não coloquei por minha conta, porque acho que este é um cuidado fundamental que se tem que ter; afinal, a gente vai embora, mas eles ficam. E as pessoas que entrevistamos, na maioria das vezes, não têm idéia de repercussão da matéria.

O que estas histórias e pessoas têm em comum?

Para mim, o que une os personagens da vida que ninguém vê é a capacidade de redenção que elas têm. As pessoas me dizem “tu só gosta de gente pobre, de gente que sofre”. Eu digo que quem me fala isso não entendeu nada. Eu me interesso pelas pessoas que se entregam na vida, e que neste processo, podem perder dentes e muitas outras coisas, mas que têm sonhos. Em comum, estes personagens têm a capacidade de reinventarem a vida e a sua história, o que eu acho mais lindo. Pessoas que transformam as adversidades em reinvenção. Tipo aquele gaúcho que entrevistei na Expointer e que acreditava que seu cavalo de pau era um cavalo real, e as pessoas diziam que ele era louco. Ele me falou que inventava o cavalo, que sabia que não era real, mas queria dar um sentido pra ele. E dava um sentido para a própria vida.

Acompanhe semanalmente na Revista Época as matérias de Eliane Brum. E aceite nossa dica: leia o livro. Tem cada história…