Com “Rota 2030”, carro nacional será avançado ou só mais barato de fazer?

UOL

 

Na primeira reportagem sobre o “Rota 2030”, programa automotivo que precisa ser anunciado ainda este ano como substituto do “Inovar-Auto”, UOL Carros apontou alguns caminhos que a indústria de automóveis brasileira planeja tomar: melhoria de fornecedores; nacionalização de tecnologia; eficiência energética; P&D; segurança; tributação – avanços nesses seis pilares são necessários e pouco questionáveis.

 

Entretanto, muita coisa ainda parece longe de se tornar realidade. Infelizmente. Da lista inicial de oito pilares apontados pelo presidente da Anfavea, Antonio Megale, dois não estão na relação acima por carecerem de qualquer tipo de proposta concreta, atuações e mediações com outras categorias: tributação e logística.

 

Há uma série de “vespeiros” nacionais que ajudam a tornar nossos produtos caros e pouco atraentes. Pior: muitos deles dependem mais do governo que da própria indústria para serem resolvidos, no regime atual de política, bem como de responsabilidade social e empresarial.

 

“Aquilo que é de competência da indústria nós estamos debatendo. Mas não adiantará muita coisa se o governo não resolver sua parte nessas questões”, analisou Rogélio Goldfarb, vice-presidente da Ford na América Latina.

 

Mas há outros pontos nebulosos ou totalmente esquecidos pelas propostas do “Rota 2030”. Veja os principais gargalos e falhas do regime proposto:

 

  1. Tributação

 

Mudanças na carga tributária podem interferir na cadeia produtiva de todos os setores – o presidente da Anfavea diz que as montadoras têm custos altíssimos com setores jurídicos só para entender a legislação e fala em “simplificar” a cadeia de impostos. Algumas marcas, sobretudo as plenamente importadoras, alegam que impostos em cascata encarem alguns produtos em até 60%. No geral, porém, o conjunto de taxações costuma onerar veículos com algo entre 13% e 25%.

 

Por um lado, Megale admite que será difícil negociar com o governo em momento de dificuldade de arrecadação e de barreiras para mudança de critérios enfrentadas em todas as esferas de governo.

 

Por outro, o Brasil é um dos poucos grandes mercados globais (com vendas acima dos 2 milhões de carros de passeio/ano) onde as empresas não divulgam de forma clara e pública suas planilhas, criando um regime de “caixa preta” sobre os reais custos de produção.

 

Se, no jogo de empurra, os impostos não vão cair e os critérios seguirão nebulosos, como estabelecer um caminho para real competitividade dos produtos?

 

  1. Logística

 

Também se discute um plano de redução daquele que é um de nossos maiores nós, segundo 100% dos executivos do setor. Conforme relatado à equipe de UOL Carros por diretores de diversas marcas, ao longo de várias conversas, os custos com logística aqui são até quatro vezes maiores do que em outros países.

 

Pede-se a expansão de ferrovias, hidrovias e sistemas de cabotagem (transporte de navio entre portos nacionais), além de melhorias em nossa sobrecarregada malha rodoviária, que absorve quase toda a demanda dos demais modais e, mesmo assim, deixa muito a desejar.

 

Mas como fazê-lo se as crises econômica e política deixaram os investimentos e obras totalmente paralisados? Empresas poderiam tomar para si a decisão técnica e de realização de modais? Como, com qual aval jurídico? Quem pagaria a conta? Qual seria o tamanho dessa conta? Quem se beneficiaria?

 

Nenhuma fonte ligada aos diferentes setores fala oficialmente desta questão. Parece não haver uma saída no horizonte próximo, já que tudo passa por reformas que não estão na ordem principal do dia.

 

Sem essas mudanças, dizem as fontes consultadas por UOL Carros, será difícil tornar o Brasil competitivo a ponto de ser um polo exportador. “Não adianta virarmos exportadores só para a América Latina. Precisamos ter tecnologia para exportar para todo o mundo”, afirmou José Luiz Gandini, presidente da Abeifa.

 

  1. Tecnologia avançada ou mais do mesmo?

 

Apesar dos oito pilares apresentados, o “Rota 2030” falha, na opinião de UOL Carros, ao não planejar, nem sequer pedir uma política específica para automóveis elétricos, modelos autônomos e até serviços de compartilhamento de transporte.

 

Estes temas e modais estão sendo discutidos neste exato momento por países como Portugal, Espanha, França, Alemanha, Japão, China, Israel, Colômbia e Estados Unidos. No Brasil, tudo é tratado como assunto isolado e só reaparece quando marca A ou B traz um modelo mais avançado ao mercado para vender três ou quatro unidades ao ano.

 

O único ponto em debate é uma possível isenção total de IPI (imposto de produção) sobre híbridos e elétricos, medida de caráter bastante superficial e que encontra par em ações feitas na Europa e EUA há quase dez anos. Ou seja, não são novidade e já estão sendo substituídas ao redor do mundo. Novas discussões nos mercados centrais passam pela remodelação da malha urbana e de como definir exatamente o espaço das pessoas e o espaço de diferentes meios e de uso de automóveis e outras formas de transporte de modo conjunto, integrado.

 

Europa e Japão já pensam em comum veículos autônomos, carros comuns e pessoas podem coexistir e, acreditem, melhorar a qualidade de trânsito das cidades e, de quebra, a qualidade de vida dos cidadãos.

 

No Brasil, veículos que andam sozinhos não devem sequer receber menção no documento definitivo do “Rota 2030”.

 

  1. Padrões

 

Na parte de segurança, enquanto os principais esforços incidem sobre itens mais simples e óbvios – controle de estabilidade, luz diurna e ganchos Isofix -, não há sinalização de qualquer legislação que obrigue a adoção de auxílios como frenagem emergencial, assistente de manutenção de faixa, sensores de ponto cego ou de tráfego cruzado, equipamentos presentes hoje em qualquer compacto da Europa.

 

Nem mesmo critérios de construção das carrocerias devem ser estipulados – o presidente da Anfavea, aliás, defende que se siga o “curso tecnológico natural” da indústria nesse sentido, sem que se especifique que tipo de tecnologia deva ser empregada. Não é o suficiente quando, na prática, o carro mais vendido do país tira nota zero em um teste de impacto por oferecer proteção lateral frágil.

 

  1. Discussão do automóvel de forma ampla

 

Ok, é interessante ver diferentes instituições do setor integradas no propósito, mas todos os participantes das discussões são representantes da própria indústria. Onde estão associações independentes ligadas a segurança automotiva e consumidores, como Latin NCAP e Proteste?

 

A sensação que fica é que o “Rota 2030” é muito “ensimesmado”: as montadoras focaram demais nas medidas que beneficiarão sua própria competitividade (e rentabilidade), mas parece que não pararam para ouvir outras partes que pudessem contribuir para o processo.

 

Fontes apontaram a UOL Carros que os critérios de segurança definidos pelo Latin NCAP desagradam Anfavea por serem quase “aleatórios”. De fato, alguns dos testes se alteram de forma não tão clara, como já apontou o colunista Fernando Calmon. Mas o papel ideal para o crescimento do setor automotivo brasileiro seria não apenas criticar, mas trazer entidades de defesa para o centro da discussão, de forma a construir critérios claros e bons para todos.

 

  1. Estabilidade política

 

Fonte ligada diretamente a marcas instaladas no Brasil afirmou a UOL Carros, com a exigência de não ter o nome divulgado, que a atual situação do governo de Michel Temer também traz incertezas e atrasos ao processo.

 

“Conversamos com ministros como se nada estivesse acontecendo, mas não podemos afirmar com certeza total se as medidas serão realmente anunciadas, se haverá um momento livre para isso”.

 

Em outras palavras: enquanto o turbilhão da crise política não passar – e um cenário de estabilidade é algo que parece bem distante – , a sequência do planejamento ficará comprometida.

 

Vai avançar ou não vai?

 

Tais lacunas deixam várias dúvidas no ar: o “Rota 2030” é verdadeiramente um regime de aceleração tecnológica da indústria nacional ou está voltado apenas ao aumento de sua rentabilidade? A pergunta precisa ser respondida até agosto. (UOL/Leonardo Felix, Alessandro Reis e Eugênio Augusto Brito)